Para entender mais sobre Direito

Consequências da pandemia do novo coronavírus para o vencimento de obrigações contratuais

Uma das dúvidas mais inquietantes no atual e calamitoso cenário provocado pela pandemia do Covid-19, sem dúvida, resulta nos impactos jurídicos para o vencimento de obrigações de natureza contratual. Afinal, será possível suspender pagamentos? Permitirá o Direito a cobrança de valores que se contava receber nas próximas semanas?

As respostas finais serão ditas, sem dúvida, pelos tribunais. E tudo se encaminha para ser balizado pelo grau de impossibilidade de cumprimento das obrigações em cada caso.

Genericamente, o Código Civil possui alguns dispositivos que impactam de forma mais direta na questão.

O primeiro é o art. 393 do Código Civil, que versa sobre as situações de caso fortuito e força maior, rezando: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

Assim, constitui caso fortuito ou força maior a situação superveniente (ou seja, posterior à celebração do contrato), cujos efeitos não podiam ser previstos e ou evitados.

O segundo é o art. 396 do mesmo diploma legal, que prevê: “Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.” Tal norma encerra a ideia de que não se pode falar em inadimplência sem que o devedor seja culpado pela omissão. É dizer, havendo situações externas à vontade do devedor que lhe impedem de pagar, não se constitui a mora e, consequentemente, as decorrências jurídicas da mora (especialmente juros e incidência de cláusula penal moratória) não se verificam e o credor não pode cobrar tais “punições” pelo não pagamento.

O terceiro é o art. 422 que estipula: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Por tal regra, todo o comportamento contratual das partes antes, durante e depois da ultimação do negócio, deve ser compatível com uma atuação ética, leal, proba e razoável. Na prática, isso impede a adoção e atitudes contratuais egoísticas, que não observam o contexto da situação da outra parte e lhe sujeitam a situação desproporcional e danosa.

Finalmente, o art. 187 do mesmo Código Civil, deixado por último pois ganha sentido à luz do mencionado princípio da boa-fé objetiva: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” A conjugação destes dois últimos dispositivos resulta na constatação de que, mesmo sendo a cobrança de créditos, no seu vencimento, um direito do credor, sua imposição neste momento de pandemia, cumulada com penalidades moratórias, pode vir a ser tida como excessiva e desleal no momento, constituindo assim abuso de direito.

Também se pode citar o art. 478, que positiva a chamada teoria da imprevisão, nos seguintes moldes: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

A reflexão do caso à luz de tais normas vem sendo construída pelos doutrinadores civilistas, indicando que a resposta para os questionamentos iniciais passa por identificar o grau de dificuldade imposto aos devedores pelas circunstâncias. Havendo uma situação de impossibilidade real, a ser aferida em cada caso concreto, diante de suas especificidades, incidirão os dispositivos para impedir que a própria mora se constitua.

São, por exemplo, os casos de obrigações de fazer impedidas pelos atos de isolamento social impostos pelo poder público, tais como prestação de serviços necessariamente no local de atividades interditadas pelas autoridades. Porém, se o caso não for de impossibilidade real, mas mera dificuldade no cumprimento das obrigações trazidas pelo vírus chinês, a mora estaria presente, havendo culpa (ainda que concorrente com fatores externos) do devedor. Aqui estariam a maioria dos casos de obrigações de pagar. Porém, nessas situações, tem-se iniciado a compreensão de que mesmo em se caracterizando a mora nessas hipóteses, também estará impossibilitada a cobrança das penalidades moratórias, como juros e multa, na medida em que a cobrança destas penalidades em meio ao surto do coronavírus representaria abuso de direito e violação ao princípio da boa-fé objetiva. Persistiria, porém, a possibilidade de cobrança judicial destes créditos, mas sem a inclusão de juros e multas. Nesse sentido, o artigo do professor Flávio Tartuce[1].

Trata-se, como dito, ainda de construção embrionária, a ser confirmada pela interpretação dos tribunais. Porém, considerando que os entendimentos judiciais via de regra seguem as orientações doutrinárias e que as interpretações no direito contratual tendem a se comportar desta forma, é muito plausível que este seja o entendimento ao final aplicado.

Daí a necessidade de adoção de medidas que demonstrem documentalmente o maior grau possível de dificuldades trazidas pela pandemia, a fim de tentar, em cada caso, a demonstração da impossibilidade com a descaracterização da mora ou, não sendo isso possível, ao menos a maior dificuldade possível, a fim de, em último caso, impedir a incidência das penalidades moratórias.

Com base nessa construção, é possível projetar respostas para algumas das perguntas mais recorrentes a respeito:

É possível suspender o cumprimento de obrigações contratuais em face da pandemia?

Em caso de demonstração de impossibilidade real de cumprimento das obrigações, sim, considerando que não há caracterização da mora. Havendo, porém, a possibilidade, ainda que dificultosa, é indispensável reunir elementos documentais para demonstrar o grau da dificuldade. Quanto mais evidenciado for o entrave aos pagamentos trazidos pela conjuntura atual, maiores as chances de repelir pretensões de cobranças de juros e multas se tomada a decisão por suspender os pagamentos. O ônus de demonstrar essa dificuldade é dos devedores.

 

É possível cobrar devedores? E se forem consumidores finais?

Assim como há respaldo para suspensão dos pagamentos em caso de impossibilidade e exclusão dos encargos moratórios em situação de dificuldade, seus devedores poderão se valer das mesmas faculdades. Cabe lembrar, porém, que o ônus da prova da impossibilidade ou da dificuldade são dos devedores e, portanto, a cobrança inicial, respeitada a moderação dos meios inerente à situação periclitante atual, pode ser empreendida. Sobrevindo resposta que indique a impossibilidade, recomenda-se negociação por um aditivo, revendo a situação e projetando cenários futuros. Ou, averiguando nível real de dificuldades a fim de nortear a tomada de decisão pela execução de medidas judiciais mais incisivas.

No caso de consumidores finais, aplica-se o mesmo raciocínio, com a diferença de que os meios de cobrança devem ser bastante comedidos, haja vista a maior proteção conferida aos consumidores finais, inclusive na cobrança de dívidas, prevendo o Código de Defesa do Consumidor que “Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.” (art. 42).

A efetivação de atos mais incisivos, como protestos e negativações, não é recomendada, por poder expor os credores à caracterização de dano moral indenizável na hipótese de não se justificar juridicamente a cobrança.

 

 

Poderei ser protestado suspendendo os pagamentos?

Sim, nada impedirá os credores de realizar apontes a protesto ou inclusões em cadastros de restrição ao crédito. Porém, em ocorrendo e estando presentes situações de impossibilidade de cumprimento ou grande dificuldade trazidas pela pandemia, serão possíveis medidas judiciais de sustação dos atos de cobrança e até mesmo a condenação dos credores abusivos em indenização por danos morais.

 

Poderei ser executado judicialmente se suspender os pagamentos?

Sim, com ainda mais liberdade se comparados aos atos de protestos e negativações. No caso, porém, de impossibilidade de pagamentos trazida pelo Covid-19, o devedor poderá embargar tais execuções, sustentando a inocorrência da mora e, consequentemente, a inexistência de um pressuposto jurídico essencial para qualquer execução.

Na situação de dificuldade, por não haver descaracterização total da mora, a possibilidade de defesa será basicamente restrita aos encargos moratórios (juros, multa, vencimento antecipado etc.). Há fundado risco de não se poder, porém, impugnar a execução em si, pois com a mora, mesmo sem culpa, a prestação é devida, sujeitando o devedor a atos de penhora, inclusive de numerário em conta corrente.

Neste último caso, porém, preserva-se o direito de buscar a revisão das cláusulas contratuais, com base na teoria da imprevisão, ou mesmo a resolução anterior do contrato (a partir do momento da instauração da pandemia e das medidas estatais restritivas), em situação de onerosidade excessiva, devendo ser investigada caso a caso.

 

Como ficam as locações? E no caso de shoppings centers?

Caso o locatário se veja impossibilitado de pagar, não havendo inadimplência, não poderão os locadores incitar despejos ou executar os aluguéis vencidos. Na situação de apenas dificuldade, a tendência é se compreender também pela presença da figura do abuso de direito na opção extrema do despejo, mantida porém a possibilidade de execução dos aluguéis vencidos, sem incidência dos encargos de mora.

No caso de shoppings centers, apesar da maior liberdade contratual que se defere a este segmento comercial e menor ingerência das regras da Lei nº. 8.245/91, os princípios gerais do direito obrigacional se fazem sentir também nas respectivas relações contratuais. Assim, as regras mencionadas (caso fortuito e força maior, descaracterização da mora em face da ausência de culpa dos devedores, observância forçosa da boa-fé objetiva e vedação ao abuso de direito) permitem crer na viabilidade de se lhes aplicarem os mesmos raciocínios. O fechamento total de shoppings, aliás, tem sido a tônica em diversos lugares do Brasil, sendo inquestionável que as atividades dependentes de um comércio agora inviabilizado resultam, no mínimo, em extrema dificuldade de honrar em dias as obrigações. Convém, porém, atentar para eventuais cláusulas que responsabilizem o lojista por caso fortuito e força maior, que podem mudar a equação em foco.

Também neste caso e mesmo em relações com shoppings centers, vislumbra-se possível a revisão dos contratos durante a permanência da pandemia, via aditivos contratuais ou, em caso de negativa dos locadores, por meios judiciais.

 

Como ficam as dívidas bancárias e de cartão de crédito?

No intuito de mitigar os efeitos do covid-19 no mercado financeiro, a Febraban anunciou que os cinco maiores associados – Banco do Brasil, Bradesco, Caixa, Itaú Unibanco e Santander – estão abertos e comprometidos a atender pedidos de pessoas físicas, MEs e EPPs de prorrogação, por até 60 dias, vencimentos de dívidas. A medida vale para contratos vigentes e em dia, cabendo pedido e negociação caso a caso com a instituição financeira. Canais eletrônicos poderão ser usados para formalizar os pedidos. A prorrogação não é, portanto, automática, cabendo o contato e a celebração, ainda que online, das prorrogações.

Boletos de consumo e cartões de crédito, porém, ficam fora das prorrogações.

Fora isso, juridicamente, a suspensão de pagamentos mencionada acima na primeira pergunta vale também para esta, mas a tomada de decisão deve, neste caso, ser de redobrada cautela, haja vista o peso expressivo da mora nos contratos bancários, especialmente de Cartão de Crédito, muitas vezes não sendo convidativo apostar nas discussões sob o julgo de taxas de 15% mensais ou mais.

 

Passada a crise, quando terei de voltar a pagar?

É plausível considerar que uma vez cessadas as medidas de isolamento social impostas pelo poder público o retorno do comércio e da vida das pessoas à normalidade não será automático. Medos, precauções, reservas pela incerteza do dia seguinte, serão sem dúvida determinantes para impedir que muitas pessoas voltem imediatamente às compras e a fazer a economia girar como se deu até fevereiro.

Sem embargo, a partir do momento em que as barreiras estatais forem levantadas, iniciará um período que provavelmente eliminará as situações de impossibilidade e mitigará os casos de dificuldade, de forma constante até o restabelecimento da normalidade. Da mesma forma, os pagamentos devem ser restabelecidos dentro das possibilidades. As empresas e pessoas físicas deverão documentar cada momento, com o objetivo de provarem futuramente que passaram a maximizar os pagamentos numa escala de valores que atenda a razoabilidade. A partir do momento em que tenham superado as obrigações primordiais e inerentes à dignidade humana de colaboradores e aquelas indispensáveis à manutenção das atividades, inicie-se o acertamento das contas suspensas – sem prejuízo, novamente, do direito à revisão dos contratos e dos valores durante o período da pandemia, algo que, sem ajustamento voluntário com o credor, demandará medida judicial.

 

Esses são alguns dos principais questionamentos que, como salientado anteriormente, têm suas respostas pautadas pela construção embrionária da doutrina acerca da situação. Elas poderão ou não serem confirmadas pelo Poder Judiciário, mas no atual momento, são as com melhor chance de prevalecer.

A conveniência e oportunidade de suspensão ou cancelamento de pagamentos e contratos deverá ser avaliada caso a caso, de acordo com as circunstâncias concretas de cada parte, para o que a Eberhardt, Carrascoza & Advogados Associados, através de sua área cível, fica a disposição para auxiliar.

 

Fonte: Eberhardt, Carrascoza & Advogados Associados. Advocacia empresarial, atuante nas áreas de direito tributário, penal tributário, societário, cível e trabalhista.

 


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